Bioética e “normalidade genética”

 Dra. Maria Emília de Oliveira Schpallir Silva[1]

Quando refletimos sobre a possível eticidade de aborto eugênico, antes de mais nada, devemos questionar o conceito de normalidade genética.

A infinita variedade de indivíduos ocorre devido à existência dos segmentos alterados do genoma. Embora a sequência do DNA nuclear seja 99,9% idêntica entre quaisquer dois seres humanos, são as diferentes combinações na sequência de bases do DNA da fração restante que determinam as características próprias de cada pessoa. Sabe-se que as diferenças fenotípicas sofrem influência do meio ambiente, mas são as pequenas mudanças genéticas codificadas no DNA as principais responsáveis pela variabilidade individual. Sem os segmentos alterados do genoma, seríamos todos clones. Algumas dessas diferenças das sequências do DNA são neutras ou silenciosas e, portanto, têm pouco ou nenhum efeito sobre o fenótipo. As outras são responsáveis pelas variações anatômicas, fisiológicas e/ou bioquímicas, ocasionadoras de distúrbios médicos específicos, diferenças de personalidade e de aptidões (ALHO, 2004, p. 76).

Essa variação genética ocorre tanto nas células somáticas (do grego: soma = corpo), que são todas as células do corpo não responsáveis pela reprodução, como nas germinativas, responsáveis pela reprodução, podendo ser neutras, deletérias ou até promotoras de uma vantagem seletiva. Uma grande parte dessas variações pode ser reparada, e outra ser deletéria. As mutações podem ser espontâneas ou induzidas por agentes mutagênicos físicos ou químicos. A idade paterna avançada predispõe a um maior número de mutações. No meio científico, a versão mais comum de uma característica genética na população é denominada “tipo selvagem”, e as variações menos comuns são denominadas “mutantes”. Porém a variação genética é a regra, e não a exceção, de modo que não se pode determinar “normal” ou “selvagem” para a maioria dos genes no nível de sequência de bases de DNA. A genética médica moderna procura melhorar ou evitar a ocorrência de doenças decorrentes de alterações genéticas com o objetivo de aliviar o sofrimento individual, e não de melhorar a raça humana. Não há uma única sequência de DNA que deva ser considerada “correta”, mas sim variações genéticas de pessoa para pessoa ao longo do genoma (KORF, 2008, p. 19). Esse dado científico mostra o dever ético em se respeitar as diferenças e é o fundamento para a rejeição da eugenia. O conceito de normalidade é relativo, olhado sob a óptica da biologia. Também serve de fundamento, a nosso ver, para o respeito às diferenças, de forma a não serem criados estereótipos de normalidade que se encaixem no padrão de “qualidade de vida” fundamentado em exigências mercadológicas.

No contexto da II Grande Guerra Mundial, as atrocidades nazistas tinham por fundamento uma pseudociência denominada eugenia. Eugenia, ou “boa geração”, foi um neologismo criado em 1883, por Francis Galton, que tinha como proposta a melhoria da raça humana, fundamentada em ciência defendida na época, e que consistia basicamente em impedir a procriação dos que fossem considerados fracos ou inaptos. Conforme os pressupostos eugênicos, a hereditariedade determinaria o destino das pessoas, a priori, desde o nascimento, na categoria inferior ou superior, condição considerada definitiva por ter sido fixada pela própria natureza. A melhoria da raça exigia que a sociedade fosse sanada das pessoas portadoras de características indesejáveis, como doenças mentais ou “impulsos criminosos” (MACIEL, 1999; GONÇALVES, 2006). Inúmeras atrocidades foram praticadas com respaldo legal e apoiadas pelo Estado, na Alemanha nazista, em nome de uma visão eugenista largamente difundida entre os geneticistas da época.

No contexto da eugenia, o poder se expressava na superioridade racial e era legitimado por uma equivocada noção de genética. Na sociedade hodierna, o poder tem matiz mercadológica: está relacionado à aquisição de mercadoria ou bens de consumo. A superioridade de um ser humano em relação ao outro, depende da posse de mercadoria. A ética da sociedade hodierna, mercadológica é voltada para o eu, individualista, consumista e utilitarista. Na sociedade que se pauta pelas relações de mercado, a nudez e fraqueza do outro o tornam vulnerável e descartável. Aquele que não interessa ao sistema não é visto como um outro, um fim em si mesmo, mas como um meio que pode ser utilizado e descartado. Torna-se mercadoria, coisa: pode ser disponibilizado. Posso dele usufruir e dispor, vendê-lo, anulando sua alteridade e, assim, “assassinando-o”. Essa destruição do diferente, este “assassinato”, torna-se práxis. Os vulneráveis são descartáveis. Essa quebra na relação ética, ou relação de alteridade, fere a identidade do ser humano. Ao negar a alteridade, o ser humano se desumaniza, perde sua identidade de sujeito.

A eugenia funda-se na intolerância que se reflete na violência, na medida em que a negação do outro, pensado como uma ameaça gera o desejo de eliminá-lo. (OLIVEIRA; ROCHA; LEAL, 2007) Os cientistas eugenistas da Alemanha nazista, antropólogos de formação médica e psiquiátrica, perpetraram um dos maiores, se não o maior, genocídio de que se tem notícia na história da humanidade. Respaldados por essas políticas eugênicas, eliminaram todos os que eram considerados imperfeitos  Em 1940, Lenz defende a eutanásia para doenças genéticas, sob a alegação de ser uma importante questão sanitária e humanitária. (BEIGHELMAN, p. 108- 111).

Devemos nos questionar sobre o conceito de normalidade, quem deve defini-lo e com base em que critérios. Qual o critério que define o que é humano: o morfológico? A genética moderna considera ultrapassado o critério morfológico ou anatômico para definir a espécie; o critério utilizado hoje é o de interfecundidade, podendo a espécie apresentar tipos morfológicos bem distintos (BOURGHET, 2002, p.57) o que inviabiliza utilizar-se um protótipo como sendo o ser humano normal. Encontramo-nos em uma sociedade que paradoxalmente clama por inclusão social, mas afirma critérios de normalidade que justificam a exclusão na radicalidade da eliminação do diferente ferindo seu direito de existir.

Podemos ainda nos questionar sobre o conceito qualidade de vida fundamentado num modelo pragmático utilitarista onde a justificação moral tem por base a utilidade individual adotando-se o critério de maximização do prazer e minimização da dor para o maior número de pessoas. (RAMOS; 2009, p. 32). Como pondera o bioeticista Sgreccia (2002, p.73) o princípio básico do cálculo das consequências da ação na base da relação custo/benefício não pode ser usado como último e fundamental na comparação de bens não homogêneos entre si, como quando se comparam os custos em dinheiro com o valor da vida humana. É sobre esse parâmetro que se elabora o conceito de qualidade de vida em contraposição à sacralidade da vida entendida, não no sentido religioso, mas como direito intrínseco a todo ser da espécie humana. (SGRECCIA, 2002, p. 73)

Como reflete Guerra (1999) os diagnósticos pré-natais têm sido usados para detecção de problemas genéticos com a difusão do conceito de qualidade de vida para indicar o aborto terapêutico. Desse modo, Gonçalves (2006) interroga se a ciência não é racista, no sentido de procurar uma raça melhor, perfeita, forte, denotando profundo preconceito contra os portadores de limitações ou simplesmente destoantes dos padrões pré-estabelecidos. A solução final de Hitler, a melhoria da raça pela eliminação dos considerados inferiores, não deixa de acontecer quando se decide descartar um embrião doente em nome da qualidade de vida.

O ser humano se diferencia das outras espécies entre outras coisas, pela capacidade de compaixão, altruísmo e alteridade. É um ser relacional por excelência. Do ponto de vista da sociologia pode-se definir o homem como um ser social. É imprescindível que haja na discussão bioética um resgate da misericórdia. Ter misericórdia é compadecer-se, “sofrer com”. Este é um aspecto importante que nos diferencia das outras espécies. Abrir mão da misericórdia é desumanizar-se.

Um dos poucos paradigmas da sociedade pós-moderna é a busca da qualidade de vida, entendida num contexto de mercado, identificada com a posse de bens materiais, a perfeição física, intelectual, ausência da dor, doença, sofrimento, chegando a ignorar a realidade da morte. Não obstante o que se apresenta é uma sociedade psicologicamente enferma, pois essa mentalidade só se sustenta no individualismo, tornando o ser humano cada vez mais só.

Busca-se tanto evitar o sofrimento, mas o maior causador deste é o próprio homem na medida em que oprime, violenta e destitui o outro de sua dignidade. As maiores violações aos direitos humanos têm suas raízes no não reconhecimento dos direitos do outro, da ruptura da relação de alteridade.

Há que se tomar cuidado em não se banalizar as agressões aos seres humanos e transformá-las, aos poucos em toleráveis, levando a um abrandamento das consciências em relação aos comportamentos não éticos. Não será a repulsa a esses comportamentos a métrica para se avaliar o desenvolvimento de uma sociedade na perspectiva da humanização? Quanto mais crítica for diante das agressões aos direitos humanos, mais humanizada será uma sociedade. (SILVA, 2013)

REFERÊNCIAS

ALHO, Clarice Sampaio. Dinâmica dos genes e medicina genômica (cap. 4). In: MIR, Luis. Genômica. São Paulo: Atheneu, 2004, p. 71-89.

BEIGUELMAN, Bernard. Genética e Ética, In: PESSINI, Leocir; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul, Fundamentos da Bioética, 2. ed. São Paulo: Paulus, 2002, cap. 8, p. 108-123.

BOURGUET, Vincent. O ser em gestação: reflexões éticas sobre o embrião humano, Rio de Janeiro: Loyola, 2002. 253 p.

GONÇALVES, Antonio Baptista. A eugenia de Hitler e o racismo da ciência. Jus Navigandi, Teresina, v. 11n. 1053,  mai 2006.

GUERRA, Andrea. Do holocausto nazista à nova eugenia no século XXI. Cienc. Cult. São Paulo, v.58, n.1, Jan/Mar 2006.

KORF, Bruce. R. Genética Humana e Genômica, 3ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008. 257p.

MACIEL, Maria Eunice de S. A eugenia no Brasil, anos 90. Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 7, n.11, p.121-130, jul. 1999.

OLIVEIRA, William Vaz; ROCHA, Cecília de Castro; LEAL, Mara de Souza Leal., Intolerância étnica e racial: o pensamento eugenista no Brasil e o ideal de “purificação” das raças. Cadernos de Pesquisa do CDHIS, v. 20, n. 36/37, p. 75-82, 2007.                   

RAMOS, Dalton Luiz de Paula. Bioética pessoa e vida, São Paulo: Difusão Editora, 2009. 376 p.

SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética: fundamentos e ética biomédica, 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002. 689 p.

SILVA, Maria Emilia de Oliveira Schpallir. Início da Vida, um estudo sobre tendências paradigmáticas. 2013. 143f. Dissertação de Mestrado em Bioética – Centro Universitário São Camilo, São Paulo, 2013.



[1] Médica, Doutorado em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo, Especialista em Coloproctologia pela SBCP, Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP, Graduação em Teologia pela PUCCAMP, Membro da Comissão Especial de Bioética da CNBB.

Autor: Pastoral Familiar

Compartilhar esta matéria no

Trackbacks/Pingbacks

  1. Confira os destaques do Hora da vida sobre a ADI 5581 | Pastoral Familiar CNBB - […] Leia o artigo Bioética e “normalidade genética” […]

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.